Conforme narrado no último artigo, com o advento e vigência da Lei 13.874/19, foram implementadas mudanças nos ordenamentos jurídicos, bem como criados meios aptos à desburocratização e simplificação das relações comerciais e empresariais que, até então, eram atravancadas devido a inúmeros protocolos exigidos por órgãos fiscalizadores.
Assim, elencamos as principais mudanças que serão sentidas, primordialmente, pelos micro e pequenos empresários, trazendo ainda a conhecimento os prováveis impactos econômicos que se esperam alcançar com a LLE.
Dessa maneira, sopesadas as mudanças práticas e os impactos causados à sociedade com o implemento das medidas aptas a trazer o fomento da economia, galgamos às modificações causadas nos textos de leis vigentes, mais precisamente no Código Civil, que sofreu alterações nos artigos 50, 113 e 421, sem contar a inclusão dos artigos 49-A e 421-A no CC/02.
Posto isto, inicialmente em relação ao Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), a LLE passou a clarificar e esmiuçar melhor o Instituto, deixando claro que serão afetados, pela quebra da pessoa jurídica das empresas, os sócios e administradores beneficiados direta ou indiretamente ante os abusos cometidos (art. 49-A e 50 do CC).
À vista disso, cumpre rememorar que o caput do novo preceito se mostra de conteúdo semelhante ao que era disposto no artigo 20 do Código Civil de 1916, in verbis: “As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”.
Mesmo o Código Civil de 2002 não trazendo o trecho destacado da antiga legislação de 1916 para seu ordenamento - fato que gerou alguns debates iniciais entre os civilistas -, a ideia do instituto da personalidade jurídica distinta dos sócios restou consolidada nas jurisprudências dos mais variados Tribunais do país.
Consoante a isso, de forma a clarificar o instrumento processual, a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica busca a ruptura relativa do instituto da autonomia jurídica empresarial para um determinado caso; ou seja, não há a previsão da invalidade da sociedade, porque o ato jurídico que desconsidera a personalidade produzirá efeitos em um caso específico, permanecendo válida ante as demais situações e atos negociais.
Assim, a Desconsideração da Personalidade Jurídica constituiu exceção à regra da autonomia da pessoa jurídica, trazendo agora ao art. 50[1] do CC/02 nova redação após o advento da LLE, conceituando, ainda, os termos de “desvio de finalidade” (art. 50, §1º do CC), a saber: (i) utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para práticas de atos ilícitos de qualquer natureza; (ii) confusão patrimonial entre sócios e administradores com a empresa (transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa, outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial).
A respeito do desvio de finalidade, a norma passaria a prever, como requisito, o elemento doloso ou intencional na prática da lesão ao direito de outrem ou de atos ilícitos, para que o instituto fosse aplicado.
Noutras palavras, mesmo que a empresa possua 5 (cinco) sócios em seu Estatuto Social, se apenas 2 (dois) deles agiram com ânimo de lesar terceiros e fraudar credores, o Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica recairá tão somente no patrimônio dos sócios que atuaram de maneira irregular e ilícita, protegendo o patrimônio pessoal dos demais sócios e administradores da empresa.
Tal inovação, neste aspecto, traz avanços ao IDPJ no que concerne à proteção do patrimônio dos sócios e administradores e, ao revés, dificulta aos credores a comprovação das práticas ilegais realizadas pelos Administradores, isso porque acarreta na aplicação implícita da teoria objetiva do abuso de direito (art. 187 do CC), o que, até então, era aplicado em entendimentos singulares nos Tribunais de Justiça, acerca do Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Percebe-se que, aqui, a lei visou resguardar o patrimônio pessoal dos demais sócios, bem como proibir a cobrança de bens de outras empresas do mesmo grupo econômico para saldar dívidas contraídas apenas por um dos segmentos empresariais.
Tais medidas, assim como todas as outras, visam trazer maior segurança jurídica e patrimonial ao ramo do setor empresarial e comercial presente.
Posto isto, passamos a análise das mudanças trazidas no âmbito dos contratos que, ao nosso ver, foi onde a lei trouxe maiores alterações e impactos aos aplicadores do direito.
Inicialmente, o artigo 113 do CC traz a função e o princípio da interpretação da boa-fé objetiva dirigida a todos os negócios jurídicos em geral.
Na redação do novo § 1º do art. 113, a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: i) for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio, sendo vedado e não admitido o comportamento contraditório da parte, com ampla aplicação prática (venire contra factum proprium non potest); ii) corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio, o que já está previsto no caput do comando, pela valorização das regras de tráfego; iii) corresponder à boa-fé, o que igualmente se retira da norma anterior; iv) for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e v) corresponder qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração; e no parágrafo 2º do artigo, vi) as partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.
Ademais, no art. 421-A inciso I do CC, assim como no art. 113 §2º do mesmo ordenamento, restou consolidada a livre pactuação entre as partes, aludindo a um possível e novo Princípio da Intervenção Mínima Estatal no âmbito privado dos contratos e reserva de caráter excepcional à revisão contratual, nos seguintes termos: Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: i) as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; ii) a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e iii) a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”.
Neste ponto, ressalta-se que as partes podem pactuar livremente a respeito de muitas questões negociais, mas isso não afasta a eventual intervenção do Poder Judiciário em casos da existência de abusos ou em havendo lesão às normas de ordem pública.
Cumpre ressaltar que inexiste “Princípio da Intervenção Mínima do Estado”. A Intervenção estatal é imprescindível para assegurar a força vinculante dos contratos e garantir a incidência das normas jurídicas e constitucionais aplicadas nas relações privadas, conferindo a hierarquia superior da Constituição e outros ordenamentos ante ao negócio jurídico realizado.
Todavia, especialmente no que concerne aos negócios jurídicos paritários, pode ser de grande benesse a inclusão de regras de interpretação contratual que não contravenha disposição absoluta de lei, sem contar que nessa hipótese, de fato, o nível da intervenção estatal para revisar cláusulas negociais pode ser feito de forma mais limitada.
Porém para casos como Contratos de Adesão ou quando evidenciada disparidade econômica entre as partes, deve-se afastar a presunção relativa ou iuris tantum de paridade e simetria contratual, o que justifica a utilização das medidas protetivas dispostas em lei.
Por tudo que foi suscitado, nota-se que a LLE visou, dentro das mudanças trazidas, valorizar o Princípio da Autonomia Privada, dando maior força aos contratos e à vontade exteriorizada das partes negociantes. Todavia, insta mais uma vez dizer que não se pode assumir que a tal da intervenção mínima do Estado passou a ser regra ou Princípio Processual; por óbvio, devem ser ponderadas e mitigadas as hipóteses concretas, sempre levando em consideração a função social do contrato e a boa-fé objetiva das partes.
- Vidal, Mariana G.
[1] “Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
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